Masija! A história do álcool na Coreia

Desde o conto de fundação da Coreia, passando pelo período dos Três Reinos, dinastias que se sucederam até o presente, o ato de beber se faz parte intrínseca da cultura e possui uma etiqueta que o rege.

Presente na vida cotidiana, carrega a ambiguidade de ser remédio e veneno ao partilhar a mesma essência da medicina e da alimentação. Tido como símbolo de comunicação com as divindades e expressão máxima de hospitalidade e generosidade a forasteiros e familiares, 술 ‘Sool’ álcool/bebida reúne diversas histórias e teorias de feitura e consumo ao longo do tempo.

술 Sool e o tempo

O termo`술` Sool como hoje se conhece é consequente do termo `수불` que expressava o processo de fermentação do álcool onde os grãos e os cereais em contato com fermento e água resultavam na formação do álcool sem a necessidade do uso do fogo ou do calor. Isso porque em coreano, 수 remete a água e 불 a fogo. Ou seja, neste processo é como se a água se transformasse em fogo, concebendo então o princípio do álcool para os coreanos.

O termo foi ganhando novas maneiras de ser pronunciado como 수울 Su Úl, 수을 Su Eul, até que passasse a ser chamado em síntese de ‘술’ Sool. Mas não foi somente o termo que mudou ao longo da história, a composição, as técnicas, os ingredientes, a forma de consumo e diversas outras características também.

Três Reinos (Baekjae, Silla, Goguryeo) 삼국시대

Neste período, o consumo e feitura de bebidas alcoólicas já eram praticados. Entretanto, um fato curioso é que o uso do álcool não se restringia somente ao consumo como também era utilizado na preservação de alimentos, para além do sal.

A agricultura estava sistematizada principalmente no cultivo de arroz, mas também era composta de outros grãos e cereais como a cevada, o sorgo, o trigo, o painço e o feijão mungo. Não atoa, parte substancial da produção de alcoólicos fermentados era feita a partir do arroz, bem como o método de fazer álcool usando outros grãos foi se aperfeiçoando e disseminando por toda a península e países vizinhos, permitindo assim que passasse a ter um apelo mais comercial. 

Dinastia Goryeo 고려시대

Promissora no que se refere ao refinamento das formas de produzir álcool, na Dinastia Goryeo as bebidas alcoólicas passaram a ser compreendidas em três principais categorias: Cheongju¹, Takju² e Soju³

¹- Cheongju 청주 ou bebida clara fermentada é a base de muitas bebidas alcoólicas coreanas. Nela o arroz é sacarificado e fermentado com leveduras e então a substância líquida mais clara é extraída a partir da purificação do álcool. Caracterizado por uma diversidade de sabores e aromas, além de acompanhar bem refeições e cumprir a função de um ‘vinho’, também é utilizado como ingrediente na cozinha para realçar sabores ou amenizar odores de proteínas animais.

Cheongju | Imagem Beauty Nuty

²- Takju 탁주 ou bebida turva fermentada possui uma das mais longas tradições de feitura na Coreia. Se origina a partir do resíduo do Cheongju misturado a água e é caracterizado pela amplitude de sabores, mas especialmente por ser levemente salgado e refrescante, com baixo teor alcóolico.

Takju | Imagem  Lim Hung Jae

³- Soju 소주 ou bebida destilada é, por princípio, obtida a partir da destilação do álcool de grãos fermentados. É subdividido em duas categorias, o soju puramente destilado e o soju diluído. No soju destilado, há grande concentração alcoólica, enquanto no soju diluído, o álcool é diluído em água e misturado a adoçantes e conservantes e por isso, há então uma redução significativa do teor alcoólico. De cor límpida e alcance popular, o soju diluído se tornou o destilado mais consumido no mundo.

Soju tradicional e Soju diluido | Imagens Park Rok Dam e Jugan Dong Ah

Fermentações utilizando frutas e ervas medicinais como base foram muito importantes para desenvolver a feitura de alcoólicos de modo artesanal e caseiro, bem como em sua expansão comercial. No término da dinastia e com influência de conhecimento de diversos métodos chineses de destilação, a técnica foi aprimorada pelo povo coreano, ganhou maior destaque e passou por processos de internacionalização.

Dinastia Joseon 조선시대

Representou o auge da cultura alcoólica coreana, onde houve aprimoramento das matérias primas (uso de 갱미 Gaengmi – arroz não glutinoso para 점미 Jeommi – arroz glutinoso), das técnicas de fermentação e do surgimento de diversas bebidas e combinações alcoólicas. Fermentados, destilados e métodos alcoólicos híbridos alcançaram o auge de sua promoção neste período, sendo exportados para o Japão, China e demais países vizinhos.

Parte da produção de bebidas alcoólicas era de cunho doméstico, cada família possuía uma sabedoria e técnica de preparo próprio que caracterizava de modo singular suas bebidas. O uso de determinados ingredientes e os métodos empregados se distinguiam e podiam denotar o nível social e econômico bem como preceitos de sorte, implicando por parte de quem produzia as bebidas, muito esforço e meticulosidade, especialmente nesta época. O ato e o modo como se bebia determinava ainda as virtudes ou máculas de uma pessoa, por isso desde cedo uma etiqueta era ensinada.

Embora Joseon fosse uma sociedade agrícola onde o arroz e outros grãos e cereais fossem abundantes, nos períodos de seca ou de colheitas improdutivas, a escassez e a fome se manifestavam. Assim, empenhar esforços para a produção de bebidas alcoólicas, onde insumos primários da base alimentar coreana como o arroz eram necessários, se tornava impensável. Durante estes períodos, portanto, a produção de bebidas foi proibida por meio de decretos e por 500 anos, foi estabelecida como política nacional, embora tenha atingido mais diretamente as camadas populares e sido apropriada de forma moral pelos preceitos confucionistas de uma ética e modo de vida pouco prudente. Já os aristocratas se mantiveram desfrutando de inúmeros privilégios, consumindo bebidas alcoólicas em diversos eventos e cerimônias, sob o pretexto de receberem autoridades e personalidades de prestígio.

Período colonial japonês 일제강점기

Se em Joseon a cultura alcoólica pôde se diversificar e expandir ainda que em contextos adversos, durante o período colonial japonês viveu seu maior desmantelamento. Em 1909 e 1916 foram estabelecidas políticas de imposto as bebidas nacionais 주세법 Jusaebob e 주세령 Jusaeryong, onde foi exigido o registro dos produtores domésticos e comerciais de bebida sob ameaça de que o não registro poderia acarretar em tipificação de crime. Entre os produtores domésticos de bebidas, era permitida a feitura de Takju, Cheongju e Soju sendo proibida a feitura de outras bebidas, embora o imposto fosse altíssimo se comparado ao imposto determinado aos produtores comerciais. Essa política enfraqueceu a produção doméstica de bebidas alcoólicas por intermédio de taxações austeras e exorbitantes, e assim, muitas técnicas de preparo, culturas diversas de bactérias para fermentação e parte do etos que circundava o ato de beber e partilhar a bebida acabaram se perdendo ao longo do tempo.

Em 1949 foi promulgada a Lei de Impostos sobre Bebidas Alcoólicas, que viria a classificar e tipificar mais detalhadamente as bebidas, os impostos a serem tributados em cada um dos tipos, licenças, mecanismos de inspeção e etc. Foi ainda estabelecido que toda e qualquer bebida com teor igual ou superior a 1% seria compreendida como alcoólica.

Pós libertação

Após a Libertação do período colonial japonês, o país enfrentou a escassez de alimentos, principalmente de grãos e cereais, por consequência, a produção de bebidas tradicionais foi mais uma vez impactada. É neste período que a 양곡관리제도 Lei de Gerenciamento de Grãos (sistema de gerenciamento e distribuição que traça planos de oferta e demanda dos grãos) foi restabelecida e pautou o uso dos grãos de modo que bebidas como o soju e outras passassem a ter seus processos de feitura impactados, insumos como o arroz fossem substituídos por outros como a batata doce e até a mandioca.

Hoje

Embora as bebidas alcoólicas ainda ocupem um lugar na cotidianidade, a forma como elas estão inseridas na cultura, como são preparadas, consumidas e o modo como estão relacionadas as pessoas, mudou significativamente.

Grande parte das receitas e saberes ancestrais de preparo de bebidas alcoólicas se perdeu no período da colonização japonesa, por isso, um levante por parte de institutos de pesquisa, programas de resgate de saberes e práticas tradicionais, da própria sociedade civil e apreciadores, tem acontecido. Sem perder de vista a realidade desafiadora que é produzir bebidas alcoólicas de modo tradicional em território coreano, tendo em vista as políticas vigentes, as altas taxas de tributo imputadas e diversos outros fatores. Não atoa, o mercado de bebidas coreanas diluídas se tornou um mercado muito mais competitivo e globalizado.

Outro aspecto a se observar, é quanto a forma como o consumo de bebidas se constituiu ao longo da história enquanto uma atividade comunal e que hoje se manifesta de forma expressiva num consumo mais individualizado, ou seja o 혼술 Honsool, tendência que se fortaleceu durante a pandemia, como observa Ryoo Insu Diretor do Departamento de Bebidas Alcoólicas Coreanas. No honsool, o consumo de bebidas é geralmente feito no conforto de casa, onde se é priorizada ainda uma escolha de bebidas premium ou mais selecionadas. Neste cenário, se outrora as bebidas só podiam ser compradas em locais físicos, passaram a ser ofertadas em plataformas online com sistemas de entrega, que permitiram uma diversificação do mercado, ampliação do espaço para pequenos produtores e a consolidação da industria de bebidas premium.

Referências Bibliográficas: Hansik, Korean Food and Drinks Stories and Traditions | Hansik Magazine | Enciclopedia da Cultura Coreana .

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